31 julho 2006

Traição

O tempo desacelera dentro de mim.
Só os meus dedos se mexem para tentar expressar algo que os meus lábios não conseguem.
O sono gelado da morte. Aproxima-se terrível e grandioso.

Nestes momentos morro para o mundo e renasço para mim.
Afasto o corpo da estrada para não ser atropelada de novo.
As pessoas passam mas raramente vêem os corpos que estão deitados no asfalto.
Têm pressa de chegar. Onde, não sei.
Pressa de chegar a qualquer lado que não seja aquele de onde vêm.
Qualquer um onde possam fugir de si mesmas e das vozes que as acusam.

Há sempre em nós uma voz estridente que nos acusa de qualquer coisa.
De certeza que tu também a conheces e a odeias.
Ela incomoda.
Tal como eu incomodava.

A minha voz. O meu tom de voz. A minha voz acusadora e pressionante. A minha voz estridente.

A que odeiam. Porque é estridente. Porque incomoda.A minha voz atravessa os ossos. Entra pela boca, sai pelos olhos, deleita-se com as entranhas. (...)

Uma voz proibida aos mortais.
Existem pessoas que chamam consciência a essa voz.
Outras chamam-lhe voz interior.

Eu digo que é um demónio que nos lambe as mãos.
Porque todos os demónios foram belos anjos, puros, inocentes. E depois cairam, loucos de sofrimento e horror.
Eu sou o teu demónio.
Eu sou a voz que grita no escuro e te incomoda.
Eu sou a voz que te viola a mente.

Por tudo isso sou condenada.
Arrastaram-me o corpo pela lama até uma árvore onde me amarraram e chicotearam.
Deram-me o meu sangue a provar.
Eu conheço-lhe o sabor.
E sorri.
A voz morreu-me nos lábios entreabertos.
Depois arracaram-me a língua e sussurram-me ao ouvido:
"para que nunca mais fales, nem corrompas os tímpanos dos outros, para que nunca mais acuses, para que nunca mais sussurres, para que nunca mais sejas gelo, para que nunca mais cuspas palavras que são dedos esticados que nos condenam".

E deixaram-me ali.
Entregue aos cuidados da natureza.

Choveu como nunca chovera antes, no meu mundo.
Contorci-me febril.
Arranco-te de mim.
Perdi toda a noção, todo o rumo.
Amanheceu lá fora e eu não disse nada nem nunca mais vou dizer porque já não posso.

Por isso atirei-me na estrada.
Para que me atropelassem tantas vezes até a dor passar à força de sentir dor física.
Mas nem assim melhorei.
Por isso agora afasto-me para não ser atropelada de novo.
Olho para o céu.
Quero acreditar que um anjo me vem resgatar.
Mas nunca ninguém vem.
Só a chuva.
E dentro de mim nada mais ficou que o vazio.

Publicado por Fairy_morgaine

Inês de Castro (a que se afasta da estrada para não ser atropelada de novo)